O Impacto dos Transtornos Mentais e Comportamentais

“O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! A vida inventa! A gente principia as coisas, no não saber por que, e desde aí perde o poder de continuação porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada. O mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas, mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. Viver é muito perigoso; e não é não. Nem sei explicar estas coisas. Um sentir é o do sentente, mas outro é do sentidor.”

 “Viver é muito perigoso… Porque aprender a viver é que é o viver mesmo… Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e abaixa… O mais difí­cil não é um ser bom e proceder honesto, dificultoso mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até o rabo da palavra.”

 “Viver é um rasgar-se e um remendar-se”

 (Guimarães Rosa, O Grande Sertão: Veredas)


Os transtornos metais e comportamentais possuem uma alta prevalência, acometendo cerca de 20 a 30 % dos indivíduos ao longo de suas vidas, sendo os mais prevalentes os transtornos ansiosos e depressivos, responsáveis por significativa morbimortalidade. Nem sempre o diagnóstico e o encaminhamento são realizados. Desta alta prevalência populacional resulta a necessidade de cuidados para transtornos mentais leves por outros clínicos que não os psiquiatras, os quais não absorveriam tamanha demanda. Isto implica necessariamente o envolvimento de Médicos de Família, de Clínicos e Cirurgiões, sejam eles Gerais ou especialistas, de Ginecologistas e Obstetras, além de Pediatras tanto para diagnosticar e tratar transtornos mentais leves, quanto para realizarem o devido screening e o posterior encaminhamento para o especialista. Da mesma forma, Psicólogos Clínicos, Terapeutas Ocupacionais, Enfermeiros e Assistentes Sociais, podem desenvolver uma suspeição de algum transtorno mental, seguindo com o posterior e necessário encaminhamento para o psiquiatra clínico, e além disto estes profissionais estão frequentemente envolvidos em equipes multidisciplinares atuando em saúde mental ou em outros ramos da saúde, ainda nos quais se depararão com desafios clínicos envolvendo pacientes com transtornos mentais outras complexidades em Saúde Mental.

Como forma de exemplificação, e considerando somente uma única síndrome, a do transtorno depressivo maior (TDM), podemos indicar seus os impactos e desdobramentos. O Transtorno depressivo maior também conhecido como depressão unipolar, é altamente prevalente acarretando grande morbimortalidade, incapacidade e grandes custos econômicos. [1–4].

Segundo o “National Comobrbity Survey Replication” (NCS-R), estudo populacional americano desenvolvido entre 2001 e 2002, o MDD possui uma prevalência ao longo da vida de, em média, 16% na população geral [5].

Outro grande inquérito epidemiológico que avaliou 90 mil pessoas de 18 países, incluindo o Brasil, foi o “Word Mental Health Survey Initiative” (WMHSI). A prevalência ao longo da vida e durante os últimos 12 meses foram respectivamente 14,6% e 5,5% em 10 países de alta renda, e de 11,1% e 5,5% em oito países de média e baixa renda [6].

Num estudo conduzido pela Organização Mundial de Saúde, “World Health Survey”, realizado com 245 mil participantes em 60 países, a prevalência de episódios depressivos nos últimos 12 meses foi de 3,2%, embora não tenham sido excluídos outros episódios devido a outros transtornos do humor do espectro depressivo [7].

Na região metropolitana de São Paulo, a prevalência do TDM durante a vida foi de 11% [8] a 18, 4%. [9]. Na população brasileira a prevalência em 12 meses foi de 8%, e ao longo da vida de 17% [10]. É provável que muito das estimativas de prevalência e incidência sejam enviesadas por subnotificação em países de baixa renda, sendo estimado que acometa cerca de 20 % das mulheres e 10 % dos homens ao longo da vida. O sexo feminino é duas vezes mais acometido, com prevalência entre 10 a 25% ao longo da vida, sendo nos USA a primeira causa de internações não obstétricas na faixa etária de 15 a 44 anos. Para o sexo feminino, estima-se que em 2020 seja a primeira causa de carga de morbidade medida em DALYS (abrev. do inglês, Disability-Adjusted Life Years, ou seja, anos de vida saudáveis perdidos por morte prematura ou incapacidade), representando 5,7% de todas as condições [13].

O relatório da Organização Mundial de Saúde de 2004 estima que 151 milhões de pessoas no mundo sejam acometidas por TDM [11], sendo a terceira causa de morbidade mundial entre todos os agravos, e a primeira nas Américas [11]. O TDM se relaciona com significativa redução de DALYs, sendo que no ano de 2002 chegou a ser a quarta principal causa. Existem projeções de que por volta de 2020 seja a segunda, e no ano de 2030 a primeira. [4,5]. A TMD grave foi incluída pela Organização Mundial de Saúde dentre as doenças classificadas de alta gravidade, ao lado da tetraplegia e neoplasias em estágio terminal  [11]. Dentre todos os transtornos mentais, o TDM é o principal responsável por redução de DALYS [12], e tamanho o seu impacto que no ano de 2017 foi alvo da campanha da OMS, “Let’s Talk”, vamos conversar (http://www.who.int/campaigns/world-health-day/2017/campaign-essentials/en/)

Os achados do NCS-R e do WMHSI identificaram que após uma baixa prevalência no início da adolescência, ocorre um aumento linear até a meia idade, com um declínio posterior [14]. Nas mulheres ocorre um aumento da prevalência durante o período gravídico-puerperal e na perimenopausa [5,15–17].

Muito do prejuízo causado pelo transtorno depressivo está relacionado à sua natureza crônica [18,19]. O quadro se torna pior ao se considerar a recorrência: cerca de 75% a 90% das pessoas com depressão terão múltiplos episódios [18,19]. Cada episódio é mais facilmente desencadeado que o anterior [20], tendendo a tornarem-se mais frequentes, severos e resistentes ao tratamento com o decorrer do tempo [21,22]. A presença de sintomas residuais (falta da resposta, de remissão e/ou recuperação) em seguida a uma suposta melhora transitória aumenta o risco de recorrência do episódio depressivo [23]. O número e duração dos episódios prévios predizem recaídas [24]. Cerca de 15-30% dos pacientes, apesar de acompanhamento especializado e múltiplos ensaios com diferentes medicações, desenvolverão quadro crônico e não remitido [25]. Múltiplos episódios depressivos ou um transtorno depressivo prolongado pode até mesmo relacionar-se com a perda de volume hipocampal, além de outras alterações cerebrais [26–28].

Ademais, a presença de depressão, mesmo a depressão menor, apresentou os seguintes impactos em outras condições médicas: (1) pacientes deprimidos buscam serviços de saúde três vezes mais do que os não deprimidos, aumentando a demanda de atendimento médico de forma geral; (2) piora a adesão ao tratamento médico de outras condições médicas; (3) piora o prognóstico em algumas doenças médicas, como diabetes, doenças cardiovasculares, insuficiência renal entre outras – cerca de 57 estudos investigaram mortalidade de pacientes com doenças médicas e depressão após 10 anos: 51% mostraram mortalidade aumentada em contraste com 23% que não demonstraram o mesmo [29,30]; (4) acompanha a evolução de condições clínicas crônicas e prolongadas, piorando o seu desfecho [31]; (5) na prevalência dos agrupamentos de doenças crônicas em pessoas idosas, é condição comórbida mais presente [32].

Tais considerações indicam que um manejo adequado das condições depressivas, assim como de outros transtornos mentais podem reduzir significativamente o impacto e o sofrimento da própria condição psiquiátrica para o indivíduo, sua família e a sociedade, reduzir seu impacto sobre outras condições médicas, reduzindo a morbimortalidade, e o DALYS, com repercussões positivas sobre o bem-estar biopsicossocial do sujeito e da população afetada.

O exemplo pode-se estender em aspectos distintos para muitas outras condições psiquiátricas, que em geral, após um episódio agudo, apresentam sintomas residuais, são de natureza crônica e recorrente, e implicam piora qualidade de vida. O Panorama deste exemplo sugere que o (re)conhecer e intervir na clínica de saúde mental de modo multidisciplinar, e sobretudo precocemente, eliminado os sintomas residuais, pode contribuir com melhora significativa, assim como do curso e prognostico, representando uma responsabilidade e um desafio para os profissionais que se enveredam na área de saúde mental. Muitos dos problemas de saúde mental são ignorados, e ainda nos dias de hoje há uma carga de preconceito e estereótipo sobre os mesmos, muitas vezes pelos próprios profissionais de saúde, o que torna este desafio ainda maior.

Além de todo sofrimento psíquico, comportamental e seus desfechos biológicos em um paciente com uma síndrome psiquiátrico, há um significativo impacto para sua família e para toda a sociedade. Uma suspeição quanto à um familiar ou amigo, ou quanto à um jovem estudante ou universitário, ou um colega no trabalho, podem mudar favoravelmente o desfecho de muitas vidas, evitando desde a desagregação familiar, a marginalização e o insucesso escolar ou universitário, absentismos ao trabalho, desemprego, além de outros inúmeros resultados desfavoráveis na vida social, cultural, familiar e laboral. Provavelmente, também seria menor o número de eventos trágicos como o suicídio, e mesmo uma redução da população carcerária. Faz-se necessário uma mudança de cultura populacional, profissionais de saúde, escolas e universidades, e sobretudo das políticas públicas quanto à saúde mental.  Haveria uma favorável repercussão na prevenção e promoção de saúde mental, e emancipação das coletividades, sendo que tais fatos deveriam aumentar a responsabilidade dos profissionais da saúde quanto à sua formação nestas condições

Além disto, muito se tem pensado, e reestruturado quanto ás políticas em saúde mental, com criação diversos dispositivos, tais como ambulatórios de saúde mental, Centros de Atenção Médica e Psicossocial (CAMPES), Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), leitos psiquiátricos em hospitais gerais, e ampliação dos serviços em hospitais psiquiátricos especializados, além da construção de uma interlocução entre saúde mental, outros dispositivos de saúde pública, educação, assistência social, políticas de lazer e bem estar, entre outros, na chamada intersetoriedade. Todos estes aspectos englobam a atuação dos diversos profissionais citados acima.

O trabalho clínico em consultório, e serviços hospitalares em seus diferentes contextos, como ambulatório, leitos psiquiátricos em hospitais gerais, enfermaria hospital psiquiátrico, e hospitais dia psiquiátrico gerais exigem uma constante atualização e um diálogo continuo multidisciplinar, sem o qual não há êxito terapêutico para os pacientes recebendo estes cuidados.


Referências:

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