O que é Psicopatologia?

“Diagnosticar uma doença é frequentemente fácil, frequentemente difícil e frequentemente impossível.” (Peter Mere Latham, Médico britânico, 1789-1875).

“Mas se me viesse de noite uma mulher. Se ela segurasse no colo o filho. E dissesse: cure meu filho. Eu diria: como é que se faz? Ela responderia: cure meu filho. Eu diria: também não sei. Ela responderia: cure meu filho. Então – então porque não sei fazer nada e porque não me lembro de nada e porque é noite – então estendo a mão e salvo uma criança. Porque é de noite, porque estou sozinha na noite de outra pessoa, porque este silêncio é muito grande para mim, porque tenho duas mãos para sacrificar a melhor delas e porque não tenho escolha.” (Clarice Lispector: A legião estrangeira)

Além dados epidemiológicos, as síndromes psiquiátricas são delimitadas por uma série de evidências (epi)genéticas, neurodesenvolvimentais, neuroanatômicas, neurofisiológicas, de neuroimagem, moleculares, hormonais, imunológicos e inflamatórios sugerindo até mesmo uma denominação para a psiquiatria de “Neurociência Clinica”. No entanto, as síndromes psiquiátricas também se situam numa confluência do desenvolvimento de escolas e teorias psicológicas, sociais, antropológicas e filosóficas, muitas vezes com origens epistemológicas distintas e ainda, cada qual possuem sua geografia e história, em singularidades próprias. Talvez a real compreensão da natureza do sofrimento mental exija uma visão multifacetada, mas com efeitos colaterais: embora permita que ao mesmo tempo se amplie e se aproxime nos dramas do adoecer, também gera muitas confusões – termos de muitas escolas, abordagens, de autores, que podem se confundir numa miscelânea infrutífera. Enquanto especialidade médica, a psiquiatria clinica busca isolar cada uma destes campos de observação, seja na pesquisa e/ou na prática clínica, respaldando-se de evidencias de estudos e em distintas áreas de observação. Diferentemente de outras profissões, a medicina busca explicações em diferentes campos fenomenológicos, e apresenta o discurso e o propósito da efetividade clínica. E, como a abordagem dos transtornos mentais e comportamentais clinicas são multidisciplinares, envolvendo médicos psiquiatras, médicos com outras especialidades, psicólogos, terapeutas ocupacionais, enfermeiros e assistentes sociais, um esforço de compreensão se faz necessário e indispensável para aproximação da comunicação entre profissionais de saúde mental na abordagem de tais transtornos.

A medicina possui a tradição histórica da observação. A coleta da história clínica e o exame físico, são observações verbais e não verbais. O exame físico se utiliza das percepções sensoriais do examinador, ainda que indiretamente por meio de instrumentos (estetoscópio, otoscópio, esfignonanômetro, martelo, entre outros). Instrumentos de avaliação e escalas psicométricas não são tão diferentes quanto os outros.

Sempre caberá ao médico observar e identificar certas regularidades e invariâncias em sintomas (queixas e relatos verbais de pacientes e/ou de terceiros como seus familiares) e sinais (aspectos observados diretamente ou por meio de instrumentos), bem como observar a evolução, a resposta à terapêutica, e estabelecer nexos causais (temporalidade, de plausibilidade biológica, entre outros). Ao clinico tornava-se possível discriminar singularidades e generalizar padrões, numa atitude comparativa em seu próprio repertório de experiência clínica e/ou acadêmica, e no repertório oriundo do contato profissionais com seus pares que exercem um controle de suas práticas, e assim, aventar uma síndrome (conjunto de sinais e sintomas) e mesmo uma etiologia (uma ou mais causa) para a doença. Forma-se uma hipótese a priori, a ser testada por exames complementares ou por tratamentos empíricos, ou ainda por exame post mortem. A ausência de uma resposta ou uma falha terapêutica implica o início de um novo ciclo de observações.

A atividade clínica de excelência exige um trabalho artesanal. Uma arte. Toda e qualquer atividade clínica, médica ou não, pode transpassar este complexo trajeto, que muitas vezes causa a “angustia da (dúvida) clinica”, retratada nos trechos em itálico acima. E, em psiquiatria clinica, enquanto especialidade médica, isto não poderia ser diferente. Ainda, além das convencionais história clínica e exame físico, fez-se necessário um outro estilo de observação sistematizada, a psicopatologia fenomenológica, descritiva ou compreensiva, tal como um outro instrumento de exame físico, que possibilitasse mais um tipo de observação, a da subjetividade vivenciada pelo paciente. Obviamente isto não implica dispensar os notáveis estudos genéticos, epidemiológicos, farmacológicos, da busca de marcadores biológicos, das técnicas de neuroimagem, da neurociência, do uso de escalas e medidas psicométricas e comportamentais, nem de manuais de classificação diagnóstica. É mais um recurso do médico ou do médico psicoterapeuta, que centra em sua pessoa, um instrumento particular e adicional de observação. Enquanto a semiologia é uma tradição, um pilar e uma base da atividade médica em todas as especialidades, a psicopatologia envolvendo o exame do estado mental é a semiologia especifica de co experienciação da psiquiatria. Constitui algo a mais do que a obtenção da história clínica.

Jean-Étienne Esquirol

Apesar de o termo psicopatologia ser criado por Jeremy Benthan em 1817, com ‘psyché’ denotando alma, ‘páthos’, sofrimento ou doença, e ‘logos’, estudo e ciência, foi com os trabalhos de Esquirol em 1837 na França e Griesinger em 1845 na Alemanha, que se desenvolveu o conceito de psicopatologia. A psicopatologia, enquanto disciplina cientifica, ocupa-se de estudar a doença mental em várias vertentes: seus modelos causais, alterações estruturais e funcionais associadas, métodos de investigação, e suas manifestações (sinais e sintomas). Alterações no comportamento, na cognição e nas experiências subjetivas constituem as manifestações das doenças mentais.

Wilhelm Griesinger

O Filósofo Edmund Husserl (1859-1938), com a corrente filosófica denominada fenomenologia, desenvolve o método fenomenológico, preconizado como puro, descritivo, apriorístico, e fundamentado na apreensão intuitiva dos fenômenos psíquicos, tais como se dão na consciência. Tudo o que existe são fenômenos, sendo que fenômeno é todo objeto aparente, é o que se apresenta à nossa consciência. A consciência possui intencionalidade, ou seja, ela se move em direção aos objetos para apreender o fenômeno. É sempre consciência de algo. A consciência é doadora de sentido ás coisas, com o poder de constituir e criar essências. E, a fenomenologia descreve a experiências psicológicas subjetivas, e seu objeto é o que aparece na consciência; ela centra-se na vivencia das coisas pelo sujeito, e não nas coisas em si. O observador, deve atentar-se aos seus próprios pressupostos, descartando as teorias explicativas, de modo a evitar que distorçam sua observação. A intuição, que é o instrumento por excelência da captação fenomenológica, consiste na compreensão empática das vivências, representando a capacidade sentir-se na situação de outra pessoa.

Karl Jaspers

A psicopatologia descritiva, desenvolvida pelo psiquiatra e filósofo Karl Jaspers (1883-1969), a partir de 1913, ainda é a pedra angular para a compreensão da narrativa das experiências subjetivas e do fenômeno do adoecer psíquico, enquanto instrumento clinico de observação. Jaspers, utilizando o método fenomenológico, aplicou às síndromes psiquiátricas e aos pacientes acometidos uma caracterização e ordenação numa via compreensiva (não explicativa, porque apenas se descreve e sistematiza) dos fenômenos do adoecer, antes inexistente. Por compreensão entende-se a intuição do psiquismo do outro alcançada no interior do próprio psiquismo. O método fenomenológico utiliza como instrumento, a mente do entrevistador, sua experiência emocional e cognitiva. Trata-se de um método empírico que enfoca dados subjetivos. É impossível que as vivencias dos pacientes sejam percebidas diretamente como fenômenos físicos. E, apenas a observação do comportamento externalizado não possibilitaria um aprofundamento no fenômeno psicopatológico. Mas, com o relato de do paciente (subjetivo), faz-se uma analogia, uma comparação, com as vivências do observador, e assim pode-se apreender a experiência subjetiva. A psicopatologia fenomenológica foca nas vivências subjetivas, e conscientes, dos pacientes, externalizadas no comportamento verbal e não verbal e numa co-experienciação. O que está inconsciente não é objeto da fenomenologia.  Ainda, para Jaspers, o “objeto da psicopatologia, são os fenômenos psíquico, mas só os patológicos”.  Por fim, a psicopatologia fenomenológica (compreensiva ou descritiva) não busca explicações teóricas para eventos psicológicos, mas busca descrevê-los, e aprendê-los. É assim, que por meio da “redução fenomenológica”, os fenômenos são colocados “entre parênteses”: são descritas as vivências em si, sem a preocupação com suas origens e consequências. Surge uma disciplina autônoma, com metodologia e sistematização própria.

Na psicopatologia descritiva, o conceito de empatia é um instrumento clinico que precisa ser utilizado com habilidade para medir o estado subjetivo interno de outra pessoa usando a capacidade do próprio observador para a experiência emocional e cognitiva como um critério de medida. Isto é alcançado por um questionamento preciso, amplo, e sistemático, “pleno de insight”, informado e persistente, até que o observador seja capaz de oferecer um relato sobre a experiência subjetiva do paciente que este possa reconhecer como sendo realmente seu. Se a descrição do observador sobre a experiência interna do paciente não é reconhecida por este como sendo sua, o questionamento deve continuar até que a experiência interna seja reconhecidamente descrita. Depende assim, da capacidade de o observador como ser humano, de experimentar algo como a experiência interna de outra pessoa, o paciente. Não é uma entrevista que possa ocorrer por intermédio de um microfone, ou computador. Depende absolutamente da capacidade compartilhada entre o observador (médico ou psicoterapeuta) e paciente para a experiência e sentimentos humanos.

É fundamentada na observação sistemática dos fenômenos vivenciados e manifestados pelo paciente acometido por um transtorno mental, em que a observação do particular possibilita uma formulação mais geral. Também possibilita uma atitude comparativa de fenômenos, instrumentalizando o clinico na distinção de entidades nosológicas.

O trabalho de Jaspers foi continuado por outros discípulos, e outras abordagens e correntes teóricas trouxeram significativas contribuições, sobretudo, na chamada psicopatologia explicativa, que diferentemente da psicopatologia compreensiva e/ou descritiva, pretende conferir uma lógica explicativa e nexos de causalidade aos fenômenos do adoecer. Desta forma, dentro da psicopatologia explicativa, pode-se falar em psicopatologia psicanalítica, cognitiva, comportamental, existencial, entre outras. Naturalmente, muitas terminologias surgiram de forma que não se pode falar nem mesmo que haja uma terminologia comum, mas talvez uma terminologia consensual ou aind, uma terminologia possível. Termos encerram significados. “O que uma palavra significa é aquilo que ela nos faz fazer. O que você faz quando diz que alguma coisa “significa” alguma outra coisa? Quais os controles desse seu comportamento verbal? Quais as consequências desse seu comportamento verbal?” (Rosa, C.E.; Dmetruk, R.B.; 2013).

O propósito de se estudar permanente a psicopatologia descritiva (ou compreensiva ou fenomenológica), assim como de uma vertente da psicopatologia explicativa e a própria fenomenologia possibilitam a construção de uma importante ferramenta sistematizada se observação, de uma semiologia da ‘psyché’ e do ‘páthos numa real coexperenciação e na delicada apreensão do ‘logos’ nas diferentes formas de aproximação e de abordagem do paciente em suas vivências e sintomatologia.


Referencias:

  1. Introdução à Psicopatologia compreensiva. Pio Abreu, J.L. Rio de Janeiro: ABP Ed. 2009.
  2. Sintomas da Mente, Introdução à psicopatologia descritiva. Obra originalmente publicada sob o titulo de Symptons in the mind © W.B Suanders Company ltd, 1995. tradução Dayse Batista, Marcos Guirado, M.; Consultoria, supervisão e revisão técnica Hélio Elkis. Porto Alegre, Artmed, 2001.
  3. Psicopatologia e Semiologia dos Transtornos Mentais. Dalgalarrondo, 2ª ed., Porto Alegre, Artmed, 2008.
  4. Manual de Psicopatologia. Cheniaux, E; 4ª ed., Rio de Janeiro: Guanabara Koognan, 2013.
  5. Manual do exame psíquico – uma introdução prática à psicopatologia. Bastos, L.C.; 3ª ed., Rio de Janeiro: Revinter, 2011.
  6. Psicopatologia Geral, Psicologia Compreensiva, Explicativa e Fenomenologia. Jaspers, K.; tradução Samuel Pena Reis; revisão terminológica e conceitual: Paulo Costa Rzezinski, São Paulo, Editora Atheneu, 2006.
  7. Entrevista Psiquiátrica. Carlat, D.J.; obra publicada originalmente sob o titulo The psychiatric interview: A pratical guide, 2nd Edition. Tradução Andrea Caleffi, Claudia Dorneles. Consultoria, supervisão e revisão técnica Aristides V. Cordioli, Porto Alegre, Artmed, 2011.
  8. Rosa, C.E.; Dmetruk, R.B. Comportamento governado por regras, esquemas e produtos Cognitivos, paradigma da equivalência de estímulos e quadros relacionais: um diálogo possível para a compreensão de comportamentos complexos? Trabalho de Conclusão de Curso de Análise do Comportamento e Psicoterapia Comportamental e Cognitiva. Orientadora: Maira Cantarelli Baptistussi. Instituto de Estudos do Comportamento PSICOLOG, Ribeirão Preto, maio de 2013.