Aspectos Clínicos da Depressão Periparto

“Querido bebê, Me perdoe.

Me perdoe por eu não ser a mãe que eu gostaria de ser pra você. Isto nunca foi o que eu imaginei: essa tristeza consumidora, essa raiva, essa falta de esperança que acinzenta os meus dias. Eu queria ser engraçada pra você. Eu queria cantar musiquinhas idiotas enquanto a gente desenha. Eu queria sair correndo atrás de você pelo parque; queria comer sorvete no almoço. Eu queria gastar uma tarde toda revirando aquela minha sacola cheia de coisas que guardei da “nossa” gravidez e finalmente montar aquele nosso scrapbook.

Mas ao invés disso, alguns dias, eu luto pra sair da cama. Perambulo pelo seu café da manhã; E ligo a televisão de novo. Não consigo cantar uma canção. Meu corpo dói demais pra sair correndo atrás de você, e quando meu corpo não dói, meu coração assume essa função. Me arrasto até a tarde, cansada demais para fazer scrapbook. Tudo é cinza, me sinto aprisionada, sufocada. Eu nunca quis isto pra gente. Isto não é o que eu queria pra você.

Eles chamam isso de depressão pós-parto. É um “truque” que hormônios e substâncias químicas fazem, causando uma perda de conexão e mau funcionamento de neurônios. Eu simplesmente me esqueci de como ser feliz. Agora, felicidade é como um sonho em que eu me lembro, mais ou menos, de ter acordado. Em alguns dias até parece estar mais perto de mim, mas permanece, sempre, longe.

Essa profunda tristeza que eu sinto não é por causa de você. É apesar de você, e isso é, talvez, a parte mais terrível. Eu estou inabalavelmente, indivisivelmente, triste em meio ao milagre que você é na minha vida. Eu cochilo quando deveria sorrir. Desisto quando deveria alcançar. Eu me obrigo a abraçar você, porque a minha tristeza me faz esquecer disso. E esse esquecimento, me faz ainda mais triste.

Eu não estou feliz. Mas estar infeliz não significa que estou infeliz com você. Até mesmo nos nossos momentos mais difíceis, aqueles em que eu grito com você por estar estressada e acabada, estou feliz com você. Eu te amo, mesmo nos seus momentos de birra intermináveis. Eu te amo quando você joga farinha de trigo pela cozinha toda, te amo quando você pinta o cachorro, te amo quando você me acorda durante a noite, de novo, de novo, e de novo. Eu amo você, bem no meio da minha dor.

Amo você mesmo na escuridão, meu bebê. Em alguns dias eu não sinto amor, mas um espaço vazio, e ajo conforme a dança de qualquer maneira. Tento frustradamente me confortar: o amor é uma ação, não um sentimento. E rezo para que minhas ações sejam suficientes pra você.

Não existe lógica na depressão. Não existe razão; não existe explicação, a não ser uma pegadinha da química, e nenhuma cura fácil. Não pedi este vazio. Essa cor cinza que me suga – todo mundo diz para que eu curta cada momento seu. Mas como posso curtir o que não posso ver? Como posso saborear esses momentos, com falta de ar?

Essas pessoas entusiasmadas com um novo bebê não conseguem ver o cinza sufocante ao meu redor. Eles têm boas intenções, verdade. Mas a invisibilidade da depressão faz parte desse inferno especial: você pode ver uma mulher se afogando, de longe, e mesmo assim achar que ela está nadando, feliz da vida, sob o entardecer. E se ela ousar pedir por um colete salva-vidas, é provável que as pessoas não ajudem. Elas dirão que a culpa é dela mesma. Dirão que ela está exagerando, que perdeu o controle sobre seus hormônios. E o maior medo: que o mundo confunda depressão com rejeição. Que se eu realmente amasse meu bebê – eles dirão – eu estaria feliz.

Não preciso que outras pessoas me digam estas coisas. Ouço elas todos os dias, na voz macabra da própria depressão.

Essa doença roubou de nós dois, meu amor. Tempo roubado; sentimentos roubados, momentos fazendo scrapbook roubados. Mas a maior crueldade da depressão também é sua maior fraqueza: ela pode lhe roubar várias coisas, mas nunca vai levá-la.

E não importa quão escuro esteja, tenho você pra cuidar. Posso me sentir vazia, mas tenho que garantir que você se sinta amado. Meus braços parecem pesados, mas colocarei-os envolta do seu corpo. Estou exausta, mas pegarei você no colo. Beijo você apesar da minha dor. Você é minha força, meu amor. Quero o melhor pra você. E o melhor é a sua mamãe, não importa a quão acabada ela esteja. E essa mamãe, sou eu.

Tenho você. Continuo. E no final, isso deve ser o bastante para nós dois.”

(Uma carta para meu Bebê, da Sua Mãe com depressão Pós-Parto.  por Gabriel Santos, 2/3/2015. Créditos: Scary Mommy http://www.papaisbananas.com.br/carta-bebe-depressao-pos-parto/)


A Depressão periparto (DPP) é considerada um subtipo de transtorno depressivo maior, altamente prevalente e subdiagnosticada que causa um significativo sofrimento para a mãe, sua criança e toda a família(1).

A DPP é caracterizada pela presença de um episódio depressivo maior (tabela 1) que pode se iniciar tanto na gestação (“depressão antenatal”), quanto após 4 semanas do puerpério (“depressão pós-parto”)(2). Contudo, e apesar de não haver um consenso, muitos dos especialistas clínicos e pesquisadores consideram que o início da DPP no período pós-parto possa ocorrer até o primeiro, ou mesmo até o segundo ano após o parto(1,3,4).

Embora estudos populacionais tenham identificado fatores de risco(5) (tabela 2), atualmente discute-se que uma complexa interação entre fatores genéticos, ambientais, inflamatórios e imunológicos, modificações do ambiente hormonal, alterações do ritmo circadiano e substratos neuronais estejam envolvidos nas causas da DPP(6).

A DPP esteve associada à repercussões para o recém-nascido, como parto prematuro e redução da amamentação, estando em discussão a possibilidade da associação de baixo peso ao nascer, menores escores de Apgar no 1º e 5º minuto do recém-nascido, admissões na UTI neonatal ou pré-eclâmpsia(7). Sintomas ansiosos e depressivos também estiveram relacionados à menor circunferência craniana, piora nutricional, cuidados perinatais deficientes, maiores riscos de lesões pela mãe por desorganização, impulsividade ou agressividade e uso de substância(8).

Também foram reportados atraso no desenvolvimento emocional, cognitivo e da linguagem, e crianças e adolescentes com maior incidência de transtornos psiquiátricos(9–11).  Isto levaria à um ciclo vicioso que aumenta a probabilidade de transtornos mentais, além de problemas emocionais e familiares vivenciados também pela criança  gerando futuras famílias com casos da DPP(12,13). Se uma DPP grave não é diagnosticada e tratada, especialmente se evoluir para psicose pós-parto, aumentam-se os riscos de suicídio materno, aborto induzido, neonaticídio ou infanticídio(14). Disto decorre a importância de uma identificação precoce dos profissionais da saúde de uma forma geral, além da percepção da paciente e sua família da necessidade de ajuda, para que se possa buscar uma avaliação e manejo médico especializado precoce.

Múltiplos fatores colaboram para que a DPP seja pouco diagnosticada, ou até mesmo pouco percebida pela própria paciente e sua família. Há um falso mito difundido entre a população, e até mesmo entre alguns profissionais de saúde, de que a gestação ou o puerpério exerceriam um efeito protetor para transtornos mentais e/ou comportamentais.

Embora a maternidade seja vivenciada de forma única por cada mãe, em conformidade com o produto de múltiplas contingências e de acordo com os seus aspectos desenvolvimentais, há uma expectativa social e pessoal de que o papel materno esteja vinculado à um processo necessariamente saudável e feliz, o que pode contrastar com a percepção de doença, postergando a busca por ajuda médica. Também, a DPP pode-se instalar de forma insidiosa (isto é, lenta e gradualmente, com períodos em que existam pouca expressão sintomas), e sem a clara identificação de fatores precipitantes (gatilho).

Além disto, pode haver uma sobreposição de queixas somáticas/corporais (como cansaço, fadiga, indisposição, alterações alimentares, do sono, dores entre outras), e mesmo, da labilidade emocional próprias da gestação ou do puerpério que se confundem com sintomas depressivos e ansiosos dificultando o diagnóstico.

Por fim, os focos de atenção e cuidados de saúde habitualmente oferecidos às gestantes e puerpéras concentram-se mais frequentemente no bem-estar materno fetal, valorizando pouco os quadros psíquicos e comportamentais, que acabam não sendo identificados (1,3,15). É possível que em muitos casos de DPP, os sintomas depressivos se iniciem na gestação de forma lenta e gradual, evoluindo sem serem diagnosticados e se intensificam no puerpério, quando aumentam as demandas psicossociais e pressões sobre a mãe, ainda mais vulnerável pelas alterações hormonais ocorridas no pós-parto imediato(1).

Os sintomas depressivos da DPP podem possuir certas diferenças e particularidades com relação aos sintomas de um transtorno depressivo maior, e por isto, a DPP deve ser distinguida de muitas outras condições clínicas, como por exemplo, o transtorno afetivo bipolar, a psicose puerperal, e a disforia puerperal. A Disforia puerperal é também conhecida como “baby blues” ou “blues puerperal” e consiste em sintomas transitórios como tristeza, crises de choro, labilidade emocional, insônia, alteração de concentração, sintomas de ansiedade e irritabilidade(16).

Estes sintomas são mais brandos e surgem logo após o parto. Atingem um pico entre o 3º e o 5º dia, diminuindo em duas semanas, e não implicam em prejuízo funcional ou sofrimento significativo. Embora necessitem de seguimento e reavaliação clínica, pois predizem a chance de ocorrência de uma DPP não exigem tratamento(17). Além do diagnóstico diferencial, é importante identificar comorbidades que são comuns à DPP, como os transtornos de ansiedade generalizada, do pânico(3,18) e o obsessivo compulsivo(19).

Um outro aspecto pouco mencionado, mas que estende sofrimento da DPP para toda a família, seria a depressão periparto paterna (20–23). Cerca de 5 a 24 % dos pais desenvolvem sintomas depressivos no pós-natal precoce. Se ocorre um quadro de DPP, existe um risco de 40-50% de que o pai também apresente um transtorno depressivo. São considerados fatores de risco para a depressão paterna pós-parto, a depressão periparto materna, pai desempregado, com idade mais jovem, imigrante, além dos conflitos conjugais e antecedentes de história psiquiátrica paterna(24,25). Além de um representar um outro sofrimento para a família, e gerando impacto econômico familiar(26), também interfere com o desenvolvimento da criança(27). Isto justificaria não apenas intervenções médicas e psicossociais para a mãe, mas também para seu esposo e toda família(4,28)

Na boa prática médica o “médico deve generalizar a doença e individualizar o doente” (Cristoph Wilhelm Huffleand, médico alemão do século XVIII), e particularmente na clínica em saúde mental e psiquiatria, deve-se enfatizar um dizer de Oliver Sacks, neurologista americano contemporâneo, de que “biologicamente e fisiologicamente, não somos tão diferentes uns dos outros; historicamente como narrativas, somos, cada um de nós, únicos”.

A DPP exige uma abordagem multidimensional e personalizada por um médico especialista, que avalie todos os campos de suas manifestações, tanto nas nas dimensões psíquicas, comportamentais, existenciais da mãe quanto nos biológicos e clínicos. É indispensável que se observe o curso e a evolução do quadro, além dos sofrimentos e os prejuízos funcionais englobando o binômio mãe-filho e toda a família. Faz-se necessário um diagnóstico diferencial para adequada diferenciação de outros transtornos mentais e a exclusão de condições médicas gerais, uso de medicações ou de substâncias tanto como causas primárias das alterações comportamentais, como condições comórbidas, sejam mentais ou clínicas gerais, que merecerão a devida atenção e intervenção. Imprescindível avaliar o contexto histórico, desenvolvimental e ambiental da mãe, os fatores precipitantes (gatilhos) e que corroboram para a manutenção do quadro (mantenedores), o balanço entre aspectos protetivos e de agravo da condição.

Também é imperativo que se analise as diversas esferas da vida, como a familiar, a social, a laboral, a afetiva/sexual, a noética (que dá sentido à vida), entre outras tantas em conformidade com o ciclo da vida humana. E, que se pondere sobre os aspectos de personalidade, temperamento e repertório comportamental da mãe. Deve-se ainda refletir analiticamente sobre o papel funcional que sintomas clínicos representam para a mãe e sua família. Posteriormente, deve-se prover informações, aconselhamento, além de discutir o risco versus benefício, e o custo versus efetividade das propostas terapêuticas individualizadas, que englobem todas as questões envolvidas quanto à gestação, puerpério, lactação, numa sabia ponderação quanto às intervenções em psiquiatria perinatal.

Finalmente, com o consentimento da mãe, num processo de aliança terapêutica, devem-se somar esforços para um tratamento adequado e uma monitorização da evolução clínica.


Referências:

  1. Stuart-Parrigon K, Stuart S. Perinatal Depression: An Update and Overview. Curr Psychiatry Rep. 2014;16(9).
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